domingo, 5 de abril de 2009

FAUNO GRISALHO

Por Heitor Brasileiro Filho (*)

Paulo Augusto Garcez de Sena
Em Salvador, antes de mudar-me para Ilhéus, tive a honra e o prazer de receber a visita quase diária do poeta Paulo Augusto Garcez de Sena (1943-1998). Residíamos na Rua Archimedes Gonçalves, Jardim Baiano, no mesmo bairro de Nazaré onde vivera sua infância.
Paulo Garcez: jornalista que se deu o luxo de dispensar a carteirinha, produtor cultural amante das artes, diretor de vídeo com algumas aparições em filmes de curta metragem, e sobretudo, poeta. Sua obra é pequena e dispersa, mas além de boa poesia - em que pese o talento pouco explorado - tinha aura e alma de poeta. Essencialmente dionisíaco, aflorava o lado apolíneo quando o assunto realmente o apaixonava. Infelizmente, nem todos souberam interpretar a manifestação de sua lucidez. Não se trata de inconfidência quando digo que cultivou em vida dois grandes inimigos: o álcool de cuja doença relutava em admitir e a obsessiva dispersão que o distanciou da criação textual.
O único livro que leva sua assinatura, dentre alguns que ajudou a compor e a editar, “A Escritura da Palavra e do Som”, com poemas e letras de músicas reunidos às pressas por seus amigos do Ceará, saboreamos desde a sutileza lírica de “A Pérola e a Concha”, ao humor irônico e inteligente de “O Poeta Desiste de Sua Glória Para Amar a Bela e Desleixada Ana Virgínia”. Cito de memória porque o único exemplar de que dispunha não se encontra mais comigo.
Tribuno intempestivo, não fazia diferença o palco da Sala Walter da Silveira, palanque em via pública ou tamborete de bodega, criativamente, reunia num mesmo discurso citações de Glauber a Gramsci, de Lacan a Zé Limeira. Da antiga tradição baiana do gogó canoro, definitivamente a sua verve não era ruiana, tampouco castroalvina, senão gregoriana: satírica por opção, mas inconoclasta por natureza.
Se é verdade o que dizem sobre céu e inferno acredito que Paulo Garcez foi pro céu (não está no purgatório porque não era homem de meio-termo), se não chegou ainda é porque parou num boteco pra tomar uma e errou o caminho. Mas, no inferno, jamais: teria sido expulso por insubordinação. O clube do capiroto sabe o que faz e é seletivo e rigoroso com seus propósitos, jamais iria admitir um sujeito decente como o Paulo Garcez. Jamais iria admitir alguém com tamanha integridade pessoal e tamanho coração.
(*)Heitor Brasileiro Filho é natural de Jacobina, Bahia. Radicado em Ilhéus desde 1994. Licenciado em Letras e pós-graduado em Estudos Comparados em Literaturas de Língua Portuguesa (UESC). Ensaísta, contista, cronista e poeta com destacada participação em concursos literários.

O POETA DESISTE DE SUA GLÓRIA
PARA AMAR A BELA E DESLEIXADA ANA VIRGÍNIA


eu que me invento outro
eu que sou o texto
e não possuo a alma
eu que posso ser Deus
e ser ínfimo quando quero
eu que conquistei o âmago
e amei melhor que todas as mulheres
o amor que imaginei como fosse
e por isso fui o mais amado
e o mais invejado ser que se conheceu
eu que tenho o poder total
sobre tudo que desejo e não desejo
eu a idéia mais original e mais inteligente
que este pequeno mundo em minhas mãos já teve
eu o poeta mais amado de que se tem notícia
e que mais fez sofrer corações e corpos
eu a idéia de grandeza mais real
de toda a pequenez humana
eu o espelho onde o reflexo se mira
e se envaidece porque é um só
eu o imaginário onde todos querem se ver
e morrem da ânsia do real
eu o auto-elogio que todos repetem
estou cansado de ser tudo isso
e a tudo renuncio para amar
a bela e desleixada
Ana Virgínia.

Mais em:
http://www.joaodorio.com/Arquivo/2007/02,03/poetica.htm

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