quinta-feira, 28 de junho de 2012

Poema da Noite

Frei Germano - Cora Coralina

Quando eu era menina
bem pequena,
pela minha porta,
pela minha rua,
pela minha ponte,
via passar
os frades dominicanos.
Túnica branca.
Larga correia na cintura
prendendo um rosário
de contas grossas.
Hábito solto.
Cruz ao peito.
Sapatões pesados.
Um chapéu grande, preto,
de abas presas, reviradas.
Às vezes, também,
conforme o tempo,
anacrônico, enorme,
um guarda-chuva
amarelado, abarracado.
Muito austeros.
Muito ascetas.
Muito graves.
Corria a lhes pedir benção,
ganhar santinho.
Frei Henrique.
Frei Constâncio.
Frei Manuel.
Frei Germano.
E quantos outros...
Já nem lembro os nomes.
Vinham de terras cultas,
distantes.
Falavam nossa língua
num sotaque estrangeirado,
com muitos erres.
Preocupavam-se demais
com os pecadores.
Queriam salvar todas as almas.
Exortavam sobre o inferno.
Contavam do purgatório.
Exaltando as maravilhas do Céu.
Frei Germano...
Quanto respeito, meu Deus!
Durezas de ascetismo.
Estatura invulgar de sacerdote.
Tão severo...
Tão alto...
descarnado.
Era a austeridade retratada,
fidelíssima,
vestindo sua imensa caridade.
Diziam até que trazia cilício
sobre a carne espezinhada.
Rigoroso nas regras de sua Ordem,
renunciava até mesmo ao consentido.
Desmaiava nos antigos jejuns,
carregando sobre si
a cruz pesada
dos pecados
da cidade.
Envergadura de atleta da Fé.
Embasamento,
sustentáculo
da Ordem de São Domingos.
Grande confessor.
Grande penitente.
Dignificou a Pátria onde nasceu.
Dignificou a Terra onde morreu.
Um dia - inda me lembro:
Apareceu sem avisar
na escolinha laica
da Mestra Silvina.
Minha escolinha primária...
Quanta saudade!
Muito manso,
muito humilde,
se fazendo pequenino,
propôs à Mestra
em dia certo da semana,
ensinar a doutrina
à meninada.
Cinquenta anos decorridos,
guardo na lembrança
sua figura austera,
retratada,
de velho santo.
E as lições aprendidas
do pequeno catecismo.
Como prêmio de aplicação
conservo daquele tempo,
recebido de suas mãos,
uma antiga História Sagrada
e uns santinhos que me têm valido
na aflição.
E sei até hoje
se me perguntarem
os "Novíssimos do Homem"
que nenhum leitor,
católico praticante,
dirá ao certo
sem rever de novo o catecismo.
Frei Germano...
No longo caminho de pedras, de quedas,
de ascensão, da vida percorrida,
nunca para mim
seu vulto
se perdeu no esquecimento.
Nunca.
E eu era apenas
guria pequenina
da escolinha primária
da Mestra Silvina...
E até hoje, guardião de minha fé,
vai me levando pela vida
Frei Germano.

Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas ou Cora Coralina, (Cidade de Goiás, 20 de agosto de 1889 — Goiânia, 10 de abril de 1985) foi poeta e contista brasileira. Produziu uma obra poética rica em motivos do cotidiano do interior brasileiro, em particular dos becos e ruas históricas de Goiás. Começou a escrever poemas aos 14 anos, porém, Publicou seu primeiro livro em 1965, aos 76 anos.

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